segunda-feira, 16 de maio de 2011

Um retrato da Literatura Contemporânea


Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.


Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

Marina Colasanti é uma escritora contemporânea que nos passa a verdade do mundo a partir dos seus pensamentos. Esse é um dos seus textos que , particularmente me chama muita atenção, pois retrata a nossa vida corrida. Para você, o que o texto representa e nos quer mostrar, a partir do ponto do vista da autora?

Comentem, 
Beijos, Thayná Rezende 

5 comentários:

  1. A autora retrata bem a vida atualmente.Hoje, nos acostumamos com as imposições da globalizaçã.É muito mais cômodo para nós aceitarmos o mundo como está do que de uma forma ou de outra tentar mudar esta realidade.Raramente encontramos notícias agradáveis nos jornais...Só ouvimos e vimos falar sobre corrupção, furtos, violência, atos de preconceito.Além do dia a dia do ser humano, corrido, agitado, quase ninguém mais vive a vida, apenas cumprem agenda.24 horas não está sendo o suficiente.Pois é, todos sabemos, mas não devíamos.

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  2. O texto mostra bem a realidade que vivemos, na verdade o que fazemos da nossa realidade. Nos acostumamos com a rotina corrida, e acabamos por viver a mesma coisa todo dia, seguindo aquela "programação". Dessa forma a vida "passa" por a gente e muitas vezes não conseguimos acompanhá-la.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Está expresso no texto como nos acostumamos até aquilo que somos contra. Não nos acostumamos porque gostamos, porque achamos adequado ou porque concordamos com tudo. Apenas aceitamos. Aceitamos porque é mais cômodo. Seria incrível se cada um saísse de seu comodismo e lutasse por aquilo que acredita ser o certo, tentar mudar algo, por menor que seja, porém vivemos em uma sociedade em que o silêncio já está inato. Só que não nos damos conta de que permanecendo assim estamos apenas deixando a vida passar e nos moldando àquilo que nos é imposto. Assim, quando olharmos pra trás, veremos como deixamos nossos sonhos de lado e nos transformamos naquilo que simplesmente foi mais fácil, e esse é um grande erro que cometemos. Apesar de todas as dificuldades, devemos sempre lutar pelos nossos ideais, porque aceitar tudo nos torna pessoas medíocres.

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  5. Ela fala que sempre nós nos acostumamos com a rotina do dia-a-dia, nós nosacostumamos com o dia corrido e acaba virando uma rotina em que fazemos aquilo todo dia a mesma coisa.


    por: Rafael Linhares

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